Texto de Fausta Cardoso Pereira
Se o silêncio é o sal da escrita em construção, então digo-vos que a dieta da minha escrita é pobre em sal. É que na minha cabeça não há silêncio e é porque não estou em silêncio que escrevo. Deixem-me contar-vos uma história, em jeito de divagação, para ilustrar melhor o que quero dizer.
O meu pai nasceu numa terra pequena do concelho de Almeida, na Beira Alta, distrito da Guarda. Pailobo é assim que se chama e não vale a pena dizer que fica para os lados da Parada, entre a Ade e a Miuzela porque sobre estas terras ninguém escreve, e nem mesmo com a ajuda dos mapas ou agora, dos GPS, conseguimos dar com elas.
Na década de oitenta moravam em Pailobo pouco mais de vinte e cinco velhinhos. A pessoa mais nova era a Inês, solteira, a moça mais bonita da terra, mas já tinha perto de quarenta anos. Crianças, só as que eram como eu, netas de alguém, que iam ali de visita, passar as férias, e portanto, estavam de passagem.
Em Pailobo existem duas capelas, uma no início, outra no fim da povoação e apenas setecentos metros as separam. O meu pai dizia-me que ali já viveram mais de cem pessoas e eu ficava a pensar «mas onde é que cabia tanta gente?»
Em Pailobo as casas são em pedra, os caminhos são em pedra, os muros são em pedra, e se procurarmos bem, podemos encontrar sepulturas romanas, em pedra. É uma povoação velha que sempre conheci como velha.
Mas apesar de velhos, os habitantes eram rijos. Nunca os ouvi queixarem-se do reumático, das atroses, não me lembro de nenhum com gripe nem tão pouco com dores de cabeça. Julgo que andavam tão ocupados que não tinham tempo para pensar se havia alguma coisa que lhes doía.
De manhã levavam os animais aos lameiros, e ouviam-se os cascos a bater nos caminhos de pedra. Passavam burros, vacas, e algumas cabras. As carroças também se queixavam porque os caminhos não eram direitos e as tábuas batiam umas nas outras. E o barulho repetia-se ao final da tarde, quando os animais e as carroças regressavam às cortes para passar a noite.
Depois era preciso ir buscar água à fonte e se me perguntarem não sei dizer quantas vezes a torneira abria e fechava, ou quantos baldes e regadores se enchiam.
Em Pailobo não havia mercearias, cafés, nem qualquer outro tipo de estabelecimentos comerciais. Não pensem que fecharam porque a clientela era pouca. Não, eles nunca chegaram a abrir, nem quando ali moravam as tais cem pessoas. Nenhum daqueles velhinhos tinha carro, mas muito antes das compras online, já as mercadorias chegavam a Pailobo.
Às segundas, quartas e sextas, passava o padeiro. Às terças, o merceeiro, e às quintas era a vez do peixeiro. Entravam pela povoação, de manhã, nas suas carrinhas numa gritaria maior que qualquer ambulância. E o apitar de cada uma era diferente, como um código morse que anuncia quem vem lá.
Se outro motor entrava pela povoação adentro, toda a gente ia ver quem é que chegava. Não havia nenhum som que passasse despercebido e se saía da rotina, era preciso investigar.
Habitualmente, nas outras terras, as pessoas encontram-se no café. Pois, em Pailobo, as pessoas encontravam-se no Tribunal. Sim, em Pailobo havia um tribunal. Ficava junto à antiga escola primária, no largo. Todos os dias, ao final da tarde, fizesse calor ou frio, os velhos sentavam-se num banco de cimento, corrido, muito soalheiro, e comprido o suficiente para caberem quase todos os habitantes da povoação. O Tribunal era neste banco.
A este tribunal todos compareciam de livre vontade. No entanto, no caso de alguém falhar o encontro, e entenda-se que o encontro não era marcado, mas antes, instituído, dizia eu, se alguém não aparecia, era razão para uma busca domiciliária, portanto, tal qual um tribunal a sério.
É claro que hoje percebo porque é que assim era. Afinal, se alguém faltasse havia motivo para preocupação. Não podemos esquecer que eram todos velhos.
No Verão, juntavam-se à mesma hora que as andorinhas. Os velhos alinhados no banco; as andorinhas alinhadas nos fios da electricidade.
Depois do jantar, a maioria dos velhos regressava, pois tinham muitos assuntos e levavam-os a todos à barra deste tribunal. Memórias, lendas, inquietações, desabafos, boatos, problemas a precisar de solução. Aqui jogava-se às cartas, decidia-se quem era o próximo a guardar as chaves das capelas, contavam-se anedotas e as novidades sobre os filhos que deixavam saudades.
Neste Tribunal julgava-se, também, a vida dos outros. Eram velhos, mas não eram santos.
Quando algum caso era mais sério, resolviam-no sozinhos, não precisavam de outras leis que não as populares, mas não fiquem dúvidas de que a justiça era feita, porque nunca os vi zangados uns com os outros por muito tempo.
A Dona Amélia era uma mulher muito despachada, de olho azul, e vestia sempre roupas coloridas. Gostava de contar as lendas e as histórias de como as gentes desta terra se arranjaram durante as invasões francesas. Foi ela que me contou porque se chama Pailobo aquele lugar.
Precisou de pouco tempo para dizer que Pailobo fora uma quinta e o filho do proprietário, uma criança pequena, numa noite em que ouvia os uivos dos lobos, pôs-se debaixo da cama a gritar: Pai! Lobo. Pai! Lobo. Ainda a oiço a fazer a pausa necessária para separar duas palavras que, entretanto, o tempo encarregou-se de juntar. Pailobo, como está escrito na placa à entrada da povoação, escreve-se junto e diz-se de repente.
No Verão, havia dois temas recorrentes: os incêndios e o javali.
Era importante ter um plano à mão para evitar um e outro, e nenhum dos dois tem por hábito avisar quando vai aparecer.
A primeira coisa a fazer quando por lá vinha um fogo ou um javali, era fazer barulho. Para avisar do fogo, tocava-se o sino a rebate, para espantar o javali dos campos de milho, deixava-se um rádio ligado.
Nestes casos, o silêncio era inimigo da segurança.
Quando algum neto com talento para a asneira, subia ao campanário para tocar no sino, só porque a corda estava ali à mão de semear, era bom que começasse a correr se queria zelar pela sua segurança. Qualquer velho, fosse ou não avô do miúdo, tinha autorização para lhe dar umas verdascadas. Com o sino não se brincava.
Quanto ao rádio que tocava para o javali, era preciso mudar-lhe as pilhas, e de vez em quando, a sintonia, não fosse o animal habituar-se às mesmas cantorias.
Quando as discussões ficavam animadas para lá do normal, era preciso um juiz, com um martelo para manter a ordem. Esse juiz era o Ti Zé Rita. Mas em vez de um ar sério e um martelo, ele usava outros truques.
Entrava na escola primária e, mesmo por cima do Tribunal estava uma janela. Abria-a devagarinho e sem que ninguém desse por ele, punha-se a atirar água para cima de quem estivesse sentado no banco. Acaba-se logo a discussão e começava outra, à volta do disparate que era um homem daquela idade ainda não ter ganho juízo.
Na verdade, o Ti Zé Rita era um tipo que ninguém levava a sério.
O encontro no Tribunal era o momento alto dos meus dias em Pailobo. Eu gostava de ouvir os velhos no dialecto típico de quem vive na raia. Até os silêncios contavam histórias. Se alguém se calava de repente, se ficava alguma coisa por dizer, eu aguçava os sentidos para perceber o que andaria por ali escondido.
Tentava pôr-me no lugar daqueles velhos e de perceber o que os fazia gostar tanto daquela terra, que no Inverno lhes trazia o frio, no Verão um calor seco, e lhes dava trabalho o ano inteiro.
A Brasileira, uma mulher que eu chamava assim porque estivera emigrada no Brasil tanto tempo que regressou com o sotaque, apontava para o horizonte e dizia-me que para ali ficava o Jardo, para ali ficava o cabo do mundo.
Mandava-me pôr em pé no banco do Tribunal, para eu ver melhor. Ora, Pailobo fica numa cova, mesmo em cima de um banco, quando olhamos em frente, não conseguimos um plano melhor. Não se avista uma casa e tudo o que vemos são barrocos, calhaus na linguagem de qualquer criança.
«Se fores ao Jardo tens de voltar pela mesma estrada», dizia-me ela.
AAAAh! É isto o cabo do mundo.
Se Pailobo que era uma terra tão pequenina, tinha uma estrada que ia dar à Ade e outra que ia dar à Miuzela, então o Jardo, que só tinha uma estrada, deveria ser ainda mais pequena que Pailobo. O Jardo só podia ser o fim do mundo.
Durante a minha infância olhei sempre naquela direcção com curiosidade, à procura de dar uma forma a isso de ser o fim do mundo.
Mas o fim do mundo não era o Jardo, o fim do mundo não ficava para aqueles lados. Ao crescer fui percebendo que o fim do mundo não é um sítio. O fim do mundo é um estado, e esse fim chegava a Pailobo.
Os velhinhos foram levados. Uns para casa dos filhos, outros para o lar, outros ainda para o cemitério. Hoje, habitam em Pailobo três pessoas: a minha avó, a minha tia e um homem que é padeiro numa terra perto, e decidiu regressar para viver na casa que foi a dos seus pais.
Já não existem animais, ninguém vai à fonte buscar água, e os comerciantes deixaram de aparecer nas suas camionetas; não há quem compre.
Se por lá anda algum javali, não incomoda ninguém. Ele não encontrará campos de milho para estragar.
O banco do Tribunal está em silêncio. Na Primavera e no Verão, as andorinhas continuam a aparecer, mas os velhos não.
Pailobo é agora o sítio ideal para aqueles escritores que procuram o silêncio para escrever. Um lugar isolado, com vista para o cabo do mundo, onde não há barulho de carros, onde os telemóveis só têm um pauzinho de rede, e ninguém aparece para nos convidar para tomar café.
Eu procuro espaços sem distracções quando escrevo, desligo a internet, ponho o telemóvel longe, desligo o rádio e a televisão. Procuro o silêncio exterior para me concentrar em todos os sons que ocupam o meu interior: diálogos, dúvidas, preocupações, memórias, e se eu os ouvir bem e com atenção, as histórias surgem.
Preciso de dar uma forma ao que oiço, preciso de arrumar o que tenho dentro de mim, é por isto que escrevo.
Eu preciso de silêncio, o que não significa que precise de estar isolada do mundo para escrever em silêncio. Assim, não preciso do silêncio de Pailobo para escrever. Além do mais, para mim, o silêncio de Pailobo é triste. As pessoas desapareceram e o silêncio que se instalou, é consequência da ausência dessas pessoas.
Que histórias tem este silêncio para contar? Hoje, ainda que em silêncio, Pailobo traz-me o barulho de outros tempos. Mas se eu entrasse por ali, pela primeira vez, sem nunca ter ouvido falar da Dona Amélia, do Ti Zé Rita ou da Brasileira, rapidamente me punha a fazer perguntas; perguntas que não me deixariam em silêncio.
Assusta-me a ideia de que o silêncio pode ocupar a minha cabeça. O silêncio absoluto, como se nada houvesse, apenas espaço vazio. O que conto pode parecer coisa de loucos, mas faz-me sentir viva. É como Pailobo, que tinha vida quando tinha velhos, quando discutiam no Tribunal, quando havia barulho nas ruas. Um barulho bom, que não distrai, mas inspira.
Se algum acaso da vida vos levar até Pailobo, eu espero ter conseguido cumprir com o objectivo que me levou a escrever este texto: adiar o silêncio.
Deixem-me explicar melhor. Resumi, e muito, as minhas memórias desta povoação como forma de materializar os sons que me inspiraram. O silêncio é um dado adquirido em Pailobo, mas se lá forem e se lembrarem da minha história, pode ser que consigam ouvir os cascos dos animais nos caminhos de pedra, as tábuas das carroças a bater, a água a correr para encher os baldes, o apitar aflito das camionetas, as discussões no Tribunal e, quem sabe, o rádio a tocar para o javali.
Acredito que as histórias podem voltar a dar vida. Acredito que os livros conseguem que uma história nunca se cale, o mesmo é dizer, que conseguem evitar o silêncio.
Para mim, as histórias nascem de sons, de sons como estes, sons que inspiram.